Num cantinho da casa de Maria Bethânia, entre plantas de Maria
Bethânia, um pequeno candeeiro feito por Maria Bethânia sustenta uma chama. A
capa de “Meus quintais” (Biscoito Fino), novo álbum da cantora, anuncia o
espírito que atravessa suas 13 faixas, dos versos aos arranjos — a amplidão da
natureza, do divino e do humano tratados numa esfera de intimidade profunda.
Como se fosse um “Brasileirinho” para dentro.
—Eu fui criada em cidade do interior, em casa — começa Bethânia,
ao falar do quintal real, vivo em sua memória, que serve de espinha dorsal ao
disco. — O quintal ficava lá atrás, era terra, árvore, uma coisa assim meio de
onça, bicho do mato. Tive a felicidade de ter um irmão da qualidade de Caetano
no galho de outra árvore. Eu ficava num, ele no outro. Aquilo era um brinquedo
muito saboroso. O quintal é um lugar livre, onde você aprende a se concentrar,
a namorar, sua cabeça viaja. E ao mesmo tempo você vê a casa, faz parte de um
lugar muito bem alicerçado. O quintal pra mim sempre teve um significado muito
grande. Tão grande que, sem prestar atenção a isso, quando foi feita a reforma
da casa, quando meu pai ainda era vivo, pedi que meu quarto ficasse no quintal,
não no hall. Porque foi onde eu vivi. Ali que tudo formou em mim.
Aquele quintal de Santo Amaro aparece no disco claramente na
figura de Dona Canô, que paira sobre o álbum e está numa foto do encarte,
recostada no ombro de Bethânia, numa foto tirada em seu aniversário de 100 anos
— ao lado da imagem, versos de “Dindi” (“O vento que fala nas folhas/ Contando
as histórias que são de ninguém/ Mas que são minhas e de você também”).
Primeiro álbum de estúdio da cantora feito após a morte da mãe, no fim de 2012,
“Meus quintais” é marcado por essa ausência. “Mãe Maria” (de Custódio Mesquita
e Davi Nasser) é a maior evidência disso.
— É a única regravação. Gravei há muitos anos. É óbvio que naquela
época Mãe Maria era minha mãe, minha mãe de santo, Nossa Senhora da
Purificação, minhas senhoras todas... Hoje Mãe Maria sou eu. Eu mesma me
contando as lendas da “Moda da onça”, da Iara. Eu mesma me dando algum conforto
já que essas mães... Quando perdi minha mãe tive um pouco que assumir eu mesma.
Eu que tenho que cuidar de mim — diz Bethânia, reforçando a fala ao notar que
são delas os cabelos brancos da foto do encarte sob a letra de “Mãe Maria”.
As lendas da “Moda da onça” e da
Iara que a cantora cita são referências às faixas “Moda da onça”, folclore
recolhido por Paulo Vanzolini (“É uma característica do Brasil extraordinária:
um cientista, trabalhando no Butantã, faz a moda da onça daquela maneira, o
mesmo que escreve ‘Ronda’...”) e “Uma Iara/ Uma perigosa Yara”, junção de
música inédita de Adriana Calcanhotto e texto de Clarice Lispector, editado por
Fauzi Arap e Bethânia, na última parceria da dupla, pouco tempo antes de o
diretor morrer, em dezembro passado.
As duas faixas estão dentro do
universo caboclo, roça, índio de “Meus quintais” — uma ampliação dos galhos da
árvore dos fundos da velha casa:
— O disco
é árvore, pé no chão, estou descalça. Todo mundo conta que os Veloso têm uma
ancestralidade dos pataxós. Tenho uma atração muito grande por essa coisa do
índio. E o caboclo foi a primeira expressão religiosa africana que vi. Santo
Amaro tinha candomblé de caboclo, que são os espíritos índios. Eu adorava, era
muito alegre. Adorava ouvir as cantigas, era perto da minha casa. Essa
lembrança me veio muito forte, tive essa intuição.
A intuição
de que aquele podia ser um caminho para algo indefinido — Bethânia não tinha a
intenção de lançar nada neste ano, ia deixar para 2015, quando completa 50 anos
de carreira — levou a cantora a convocar Chico César para compor para ela. Ele
atendeu ao pedido e assina duas do disco, “Xavante” e “Arco da velha índia”,
que fez pensando na cantora (“O arco da velha índia/ É corda vocal insubmissa”):
— Foi um
modo de ele me ver. Estou velha, de cabelo branco... Fiquei fascinada por
aquilo — conta Bethânia. — Ele dedicou a mim, mas eu disse que queria dedicar a
Rita Lee. Porque Rita sempre fala que quer ser a velha índia sábia. Eu
brincava, cheguei a falar para ela cantar “Uma Iara” comigo, mas depois pensei:
“Deixa a Rita quieta”.
Ao saber
que o paraibano estava compondo para Bethânia, Calcanhotto mandou uma mensagem:
“Ciúme de Chico César”. A cantora pediu então que ela fizesse algo para Iara.
Saiu “Uma Iara”, no qual a compositora chega ao mito amazônico pela Grécia
(“Iara, a que canta, a citéria”).
“Sou senhora e sou meninota”
“Meus quintais” inclui ainda o samba-enredo indígena “Povos
do Brasil” (de Leandro Fregonesi), quatro faixas de Roque Ferreira (só ou em
parceria com Paulo Dafilim ou Paulo César Pinheiro) e as antigas “Dindi” (Tom
Jobim e Aloysio de Oliveira) e “Lua bonita” (Zé Martins e Zé do Norte), esta
encharcada de memórias (“Quando falo de meus quintais tem uma melancolia
também, porque eu moro desde os 17 anos longe disso”).
— Em casa ouvíamos tudo. O samba de roda, um rei que chegava
(“Folia de reis” é dedicada a seu irmão Rodrigo, que recuperou a tradição do
festejo em Santo Amaro), uma cantiga da bossa nova, minha mãe assoviando uma
canção... “Lua bonita” entra por aí — diz, antes de se calar, emocionada.
Alguns minutos depois, ela volta à canção:
— Os baianos gostam de “Lua bonita”. Caetano gravou no
“Pedrinha de Aruanda” (de Andrucha Waddington) com minha mãe. E Raul Seixas tem
uma gravação que é um show. Foi onde estudei.
A melancolia se une a uma alegria infantil no álbum, explica
Bethânia.
— Ao mesmo tempo em que sou eu senhora, sou eu meninota.
Tanto que botei criança cantando. No CD, eu faço eu, eu conto eu, viajo em mim,
passo para o caboclo, viro Iara, saio, viro tapuia.
A ideia do quintal, de liberdade, brincadeira, pé na terra,
também se faz presente na exuberância seca, de poucos elementos, dos arranjos
(a direção geral do CD é assinada por ela e Jorge Helder).
— Tem uma singeleza, uma naturalidade de cada um dos
músicos. Eles iam realizando muito livremente, sem nenhuma pretensão de “ah,
esse acorde”. Não tinha aquela festa do acorde, não.
Com essa simplicidade natural, a faixa de abertura, “Alguma
voz” (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro), toca nos temas centrais de “Meus
quintais”, entre eles o canto, que aparece no disco associado ao vento, ao mar,
à terra e à voz humana:
— Ainda está muito longe de eu desvendar o mistério do
canto. Acho lindo uma pessoa emitir. Um dessa maneira, outro daquela, essa
individualidade que Deus determina. A voz traduz isso. E é o ar, sem o qual
você não vive, que é o elemento do meu orixá. Fica uma casa boa para mim. Meu
quintal."
O Globo
Fonte: http://www.paraiba.com.br/2014/06/05/20993-maria-bethania-poe-os-pes-na-terra-em-meus-quintais-veja-critica-do-novo-trabalho-da-baiana